quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Da utilidade

Então nos tragou essa necessidade de ser útil. Como máquinas com manual de instrução ou animais treinados para rodar a moenda e carregar fardos até a exaustão. Quando não encontramos funcionalidade naquilo tudo que vivíamos parece que acabaram-se as pilhas. Tentamos, em vão, trocar. A fraqueza abateu tudo e não houve alcalina que resolvesse o nosso impasse.

Não havia também assistência técnica especializada na lista telefônica. Procurei do meu jeito, você do seu. Não houve. Um não constante diante de um beco completamente fechado. O escuro e tudo o que dele viesse a ser. O escuro não é assim esse vilão. Foi apenas o reflexo de um estado em que chegamos juntos. Apagamos uma a uma as luzes que nos carregaram até aqui.

No princípio era o próprio Luzeiro Maior. E quando faltava essa luminescência, outros menores enfeitavam o que para nós era gala, festa e transbordar constantes de líquidos aconchegantes que dividíamos, multiplicávamos. Éramos, apesar de. Éramos.

Eu me levantava e fazia o café com o cheiro forte que te despertava de sonhos em que eu mesma te colocava. A mim me agradava o café mais fraco, mas o fazia negro e espesso para saciar o paladar que você deixava em minha boca. Era sua a minha utilidade.

- Me faz um café...

- Hãn? - Despertei com a tua voz pouco desperta.

O seu pedido naquela manhã, todas as manhãs depois que não precisou pedir qualquer coisa que fosse deveria ter me servido de alerta. Uma das luzes extinguiu-se. Sem aviso, talvez de maneira tão imperceptível.

Com a mesma devoção de meses, pus-me de pé. Mais uma vez, coloquei três colheres bem servidas de pó no filtro e esperei pacientemente que a água fervesse na leiteira, depositada com cuidado na maior das bocas do fogão elétrico. A energia que fizera o fogo. A utilidade de um simples botão. Basta um toque e fez-se o fogo. O fiat que não mais se pronuncia, se aperta.

Café era a única coisa que eu tinha a capacidade de tirar da matéria-prima na cozinha. E a sua utilidade, antes mesmo de corrigir os meus textos em inglês ou arrumar os meus livros desajustados na estante, era me manter longe das dietas compostas por instantâneos. Talvez, se eu tivesse te permitido ser mais útil. Se eu não tivesse arrumado o chuveiro quando a resistência parou de resistir. Se eu não tivesse matado as baratas que percebiam sua ausência para fazer delas o meu apartamento. E se eu tivesse te ligado aos prantos quando a água insistiu em invadir minha casa. Mas não. Não te deixei ter a utilidade do macho que protege a indefesa fêmea da caverna.
Saí da caverna e te deixei sozinho nela. A culpa não é minha. Muito menos sua. Nos amamos, nos utilizamos. Fomos úteis. Mas de alguma forma as coisas pararam aos poucos pelo caminho.

No copo, daqueles que vinham com requeijão dentro, pairava um café bege. Fraco como graveto comido por dentro. E você sorriu quando apareci pelo vão da porta da cozinha, com ar ainda sonolento.

- Acho que você perdeu a hora, meu bem. - E me entregou o café ao meu gosto. Doce e ralo, do jeito que você sempre se recusou a tomar. Um gesto desesperado de se desprender do próprio sabor para abrigar a minha coisa. O que eu fiz, incansavelmente, mas sem qualquer cobrança durante o tempo que permanecemos iluminados. Não te pedi pagamento por ser útil ao seu paladar, esse era a minha contribuição, como um adicional de fábrica..

Perdi a hora, me perdi no tempo e deixei que se apagassem mais algum daqueles luzeiros que nos guiavam. O atraso em que me envolvi, o caminho equivocado pelo qual me embrenhei impediram que eu desse atenção para os pequenos apagões que se fizeram no cotidiano da casa que partilhavamos. Sob o teto que chamamos nosso, instalou-se uma espécie de racionamento não determinado por lei, mas pela prudência desavisada que nasce com o ser humano e estoura em períodos de alerta.

Talvez foi culpa desse racionamento eu não ter percebido de imediato quando os seus livros de filosofia pura partiram da confusão da poesia esparramada pelos volumes na estante.

- Onde estão os seus livros? - me dei conta, uma semana depois de diversos vazios terem se instalado na estante.

- Precisei levá-los para a faculdade – você disse.

Deixar no abandono a minha poesia era mais uma lâmpada que apagamos, uma que estava em posição estratégica. Apagá-la foi fulminar uma cadeia inteira delas. Solitários, aqueles versos todos me desencaminham, rompem um lacre, tornam infinitos horizontes outrora próximos e reais, que moravam dentro das possibilidades. Você sabia disso.

- Intercalei Vinícius com Descartes. Assim, eles se ajudam e constroem um amor menos doloroso e triste, mais lógico. - E eu ria quando você me explicava porque deixou a Clarice ao lado de Nietszche ou Hegel perto da Lygia Fagundes Telles. Assim, um por um, você os tinha mudado para a minha estante, tempos antes de retirá-los sem aviso prévio.

Quando percebi a ausência dos seus clássicos, meus olhos encheram-se de lágrimas. Nós sabíamos, sem palavras, o significado daquele abandono literário. E você me abraçou com seus braços de paz, beijou-me da maneira terna e pacificadora. E, pela última vez me amou com um amor de amante antigo, sossegado. Na manhã seguinte, levantei-me e passei o derradeiro café preto. Negro, sem piscas, sem luzes, sem reflexos.

Interessante é que não resisti. Não à maneira de fera ferida, de animal que se debate quando abatido. Apenas conversamos, procuramos uma solução que nos tornasse novamente úteis um ao outro. Não havia. Você me ensinara o que eu precisava saber do que, à sua maneira, era viver, organizara minhas roupas, meus livros e pensamentos. Eu te desarrumei o que precisava de desordem e tirei amarras que você julgava arrimos. Fomos úteis um ao outro. Já não havia mais funcionalidade para nós.

Antes mesmo que eu notasse os armários vazios de você, em mim já não havia nem mesmo uma gravata abandonada em algum canto qualquer. As suas malas estavam postas ao lado da porta da cozinha e o cheiro de café, preto e forte, feito por você era predominante no ambiente. Não dissemos nada. Você apenas beijou carinhosamente a minha mão direita, essa que eu uso para escrever, para alisar os cabelos ou coçar os olhos da maneira infantil, como você gostava de ver. Se divertia com esse gesto primitivo. Eu, resignada, deixei que você partisse, devolvendo um beijo no seu rosto com a barba sempre impecável. Marca da sua civilidade e asseio.
Agora, perdido e sem rumo, entre Hilda Hilst e Drummond, está o volume do “Crítica da Razão Pura”. Kant ficou esquecido na estante. Para mim, já sem nenhuma utilidade.

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