segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Tão Adélia

Remexendo na vida reencontrei Adélia Prado. Fiquei em dúvida no que queria dividir aqui. Ela merece mais espaço do que esse blog tão meu. Selecionei dois trechos que hj me dizem de mim. Egoísta, né? E um blog é o que?

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa me casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


CACOS PARA UM VITRAL

No caderno de Glória: um romance é feito das sobras. A poesia é núcleo. Mas é preciso paciência com os retalhos, com os cacos. Pessoas hábeis fazem com eles cestas, enfeites, vitrais, que por sua vez configuram novos núcleos. Será este pensamento vaidoso? Por certo. Quero ser um poeta extraordinário e desejo poder escrever um teatro muito engraçado pra todo mundo rir até ficar irmão.

Glória decifrou o garrancho na nota de um cruzeiro: "Ontem fiz quinze anos e fui a primeira vez na Figueirinha. Dei Cr$ 50,00 pra mulher ela ainda me deu troco. Não tava ruim nem bom."

Juca entrou esfregando as mãos: — Tá um frio de matar velho! — Se quer capote, na segunda prateleira da cozinha tem. Juca bebeu e saiu. Tivesse ou não, brigado com a Naná, a cada dia ele bebia mais. Estará certo, pensou Glória, facilitar desse modo a cachaça do Juca? Estarei sendo leviana? Estava.

Ritinha: — Mãe, se eu morrer cê chora? Glória: — Ih! Choro até secar.

Glória ouviu de relance os peões almoçando na obra: — Rico tinha que nascer tudo morfético. — Tem rico legal, sô! — Tem não.

Ritinha chegando da escola: — Mãe, eu laía e a Fostina envinha. Ela envinha aqui? — Que é isso? Existe o verbo lair e envir? — A senhora também fala assim. — Falo mesmo. — Então... — Então nada. É porque eu gosto muito da minha filhinha e quando a gente gosta, chateia um pouquinho.

Anselmo Vargas beijava Sônia Margot na novela das sete. O menininho de Matilde pediu: mãe, muda o programa. Meu pintinho fica ruim.


— Dona Glória, eu fiquei incurvida. — O quê? — É, sobrou pra mim a obrigação de catar neste quarteirão as esmolas pro Natal dos pobres. — Ah! — O apostolado, cuja eu sou membra é que me incurviu. — Entra, Fostina. — Não, se eu delatar, atrasa pra mim.

A placa indicava na estradinha de chão: Sítio do AU PURO. Alguém tinha consertado: Sítio do AR PURO. Gabriel parou o carro e escreveu em baixo, sítio do AL PURO. No lugar voava sem pressa uma linda borboleta amarela e preta.

Copiado por Gabriel, do sanitário da rodoviária: PEDE NÃO HORINAR NO VÁS.

Remexendo papéis, Glória achou uma notação com sua letra: "retalho de poesia dá excelente prosa." Não se lembrava mais por que escrevera aquilo. "Retalho de poesia dá excelente prosa, como retalho de hóstia dá excelente sopa", descobriu escrito mais embaixo. Ainda: "Privada pública" é uma impropriedade. Empregada chama as amigas invariavelmente de colegas. Deus é fiel, no entanto vacilo, amo com reservas, deixo que pequenas nódoas confundam minha alegria. Quando serei evangelicamente generosa, confiante como um menino para quem o Reino está preparado?"

Extraído do livro "Cacos Para Um Vitral", Editora Rocco, 1989.

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