quarta-feira, 7 de julho de 2010

Pelos olhos teus

- Aqui, como eu te contei, é a avenida principal.
- Mas e o rio que você disse cortar a cidade e passar por esse lugar?
- Não dá pra ver porque está escuro.
Estava frio, escuro e o ônibus seguia numa velocidade razoável. O casal de namorados viajara mais de seis horas. Uma pintura. Ela, loira, alta, sem nenhuma medida fora do lugar. Ele não era assim tão chamativo, mas combinava perfeitamente com todo o conjunto da obra.
Chamou a atenção como ela via pelos olhos dele. Aquele que a acompanhava antecipou as visões que ela teria. Por meio da retina dele, que já havia fotografado e registrado o lugar em que estavam agora, ela já tinha ido até lá. E esse processo causou um encanto. Sentimento que pode ser bom ou ruim dependendo do humor que nos tira da cama. Olhar pelos outros olhos e estar onde nunca estivemos, mas estar. Ela conhecia cada canto daquela cidade, sem nunca, jamais, ter saído da própria casa!
- Aquele prédio é o que eu te falei
Ela sorria, como se estivesse atravessando a pracinha do coreto que ficava na cidade em que nascera e crescera. E os olhos dela, na realidade, não fitavam o prédio, ou a avenida, ou o rio. É nele que eles pousavam. Repousavam. Numa espécie de adoração, sem esperar nada em troca. Não se tratava de uma adoração de senhoras que têm certeza de que os joelhos calejados trarão a conversão de um filho ou a cura de um parente. Não, nada disso. A adoração dela dava a ele um poder que nenhum dos outros 34 passageiros poderia ter. E ele, completamente ciente disso, passava os braços pela cintura dela e a protegia, como um deus faria diante das ofertas.
Talvez, ele nem conhecesse tanto a cidade como falara. Era provável que inventasse um ou outro detalhe histórico que nunca foi escrito nos livros, apenas para demonstrar a ela o poder que tinha sobre aquele universo que ela conhecera pelos olhos dele. Enquanto a íris dela estivesse colada nele, nada do que dissesse seria mentira. Os que amam não mentem. Fazem relatos verdadeiros do que existe em uma realidade inventada, apenas para serem olhados como ele era naquele instante.
Desceram no maior terminal rodoviário que ela já vira na vida. Aquela surpresa ela não tinha vislumbrado pelos olhos dele. Houve esse descuido, ele não contou-lhe a respeito do exato momento do desembarque. Por um instante, os olhos dela desprenderam-se daquele que a acompanhava e desfilaram pelas luzes, sons e incontáveis rostos que se encontravam ali naquele lugar enorme que visão alguma poderia apreender completamente. Nesse instante, quem o visse poderia perceber o desespero no olhar por perdê-la da vista.
Para total descontrole dele, os braços dela afrouxaram do abraço dele, encantada, surpreendida pela imensidão que não continha no olhar dele. Ele deixou que o queixo caísse. Sabia que se não reagisse em segundos, em um simples reflexo impensado a perderia ali mesmo. Então, apelou para a sobrevivência.
- Olha ali, aquele doce que você adora!
Ela saiu de uma espécie de transe. Esteve em um território que os olhos dele não penetraram. Mas encantou-se com aquele que a conhecia e sentiu-se invadida por um calor aconchegante que espantava qualquer vazio escuro, vãos que olhares desconhecidos deixaram ao encarar-lhe. Sorriu e puxou o braço dele como menina em direção à tenda que vendia os doces. Olhou-o novamente com admiração e adoração fiel. Ele estufou o peito e sorriu. Ela sorriu-lhe de volta. Tudo estava sob controle novamente.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que lindo...