sexta-feira, 26 de março de 2010

Bem fininho

Hoje a minha felicidade é uma camada fina sobre um bolo trufado de chocolate. É colorida, sensível, quase sem espessura e de uma delicadeza que desintegra na boca. Não tem gosto. Carrega em si o gosto do bolo e engana como se o chocolate tivesse um sabor verde, amarelo, azul, roxo e laranja. Só engana. O sabor mesmo vem do bolo, do qual tenho direito a uma fatia só. Nem sei se é fatia, mas o papel de arroz da minha felicidade parece conter os gostos das cores que contém. É assustador que essa finura toda carregue em si cores e sabores.
O receio é que dissolva na boca e não chegue ao estômago, não sustente. Seja só esse gosto saboroso, delicado e colorido. Fecho os olhos, olhar é um peso que pode estragar tudo. Quando se cerram as cortinas para o público, é possível vislumbrar realidades invisíveis: como a finura do papel de arroz da minha felicidade com sua cores gritantes e sussurrantes. Não fecho os ouvidos porque são inclementes, não têm portas automáticas como o olhar. Se pudesse cerrá-los naturalmente como faço com a visão, faria. Isso porque é tão delicada a minha felicidade sobre o bolo que tenho receio de maculá-la com o que vem de fora de mim. Têm coisas boas e ruins que vem de fora de mim, mas sou bruta demais para saber o que fere de morte ou potencializa a fina camada da minha feliz folha de papel de arroz colorida e colorante.
Por isso, é difícil lembrar que fui feliz quando se apagam as luzes do palco: é tão fina a camada sobre uma montanha de ingredientes que é complexo recordá-la. Lembro dos ovos, da farinha, do leite, dos lugares, pessoas, carros, estradas, fermento, cacau. Mas a folha de espessura sem camadas é tão sutil e sem gosto definido que é quase impossível (muitas vezes, não existe o quase) saber que um dia ela existiu. Na dor, só me lembro que não sei fazer bolos, ainda que seja só seguir a receita ou abrir uma caixa vendida em diferentes prateleiras. Não sou capaz de imprimir cores nem produzir algo tão fino e delicado quanto o papel de arroz colorido que se derrete ao mínimo contato com o meu eu interior. Quando tudo está escuro e não há mais sons, penso apenas que nunca mais verei novamente o que me traz a sensação de suspenso que sustenta a vida. Penso que morro. Até que surjam impressas novas imagens e cores em um papel arroz fininho e delicado que mostra a felicidade. Degusto. Mas não tem gosto. Só o sabor da mistura e as cores da vida.

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